A Má fé da Democracia


Quando eu pensava que não podia ficar pior, que o projeto de lei do Senador Azeredo continha suficiente desconhecimento, eis eu estava errada:Vejam o e-mail que a Assessoria do referido senador enviou para o Marcelo Träsel. Sim, meus caros, somos pessoas de má fé por tentarmos discutir um projeto de lei dentro de uma sociedade democrática. E como eu sou uma pessoa de extrema má-fé, vou ainda discutir os trechos do e-mail (em itálico).

" - NÃO. O usuário não será permanentemente vigiado pelos provedores ou por quem quer que seja. A proposta determina apenas que os provedores guardem dados de CONEXÃO - hora de on e off e número de IP - e que os repassem, mediante solicitação, à autoridade investigatória."

O que diz o substitutivo:
Art. 22. O responsável pelo provimento de acesso a rede de computadores é obrigado a:

I ? manter em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de três anos, com o objetivo de provimento de investigação pública formalizada, os dados de endereçamento eletrônico da origem, hora, data e a referência GMT da conexão efetuada por meio de rede de computadores e por esta gerados, e fornecê-los exclusivamente à autoridade investigatória mediante prévia requisição judicial; (?) III ? informar, de maneira sigilosa, à autoridade competente, denúncia da qual tenha tomado conhecimento e que contenha indícios da prática de crime sujeito a acionamento penal público incondicionado, cuja perpetração haja ocorrido no âmbito da rede de computadores sob sua responsabilidade.


Como assim o usuário não será vigiado se seu IP será gravado e os dados de conexão também? Isso não é vigilância? É supervisão, quem sabe? Ou talvez os ilustres senadores não saibam que o IP de uma máquina é a identificação da mesma? Se os dados de conexão dos usuários forem gravados, mesmo que seu comportamento seja legal, eles estarão lá. Enão vou nem entrar no problema do custo do acesso.

"- A lei não se aplica a quem, por lazer ou trabalho, usa corretamente o computador, seja desenhando, seja baixando músicas, seja batendo-papo, seja dando opiniões em blogs, fazendo pesquisas ou quaisquer atividades semelhantes. O BOM USUÁRIO DEVE FICAR TRANQUILO, POIS NADA ACONTECERÁ A ELE, A NÃO SER O AUMENTO DE SUA SEGURANÇA, PELA LEI, NO USO DAS TECNOLOGIAS."


Ah bem. Então quer dizer que há um uso correto do computador, que será previsto em lei? E como saberão os provedores, ao gravar os dados de todos os usuários quem serão os corretos? Se eu assinar uma carta dizendo que vou ser boazinha, não gravarão meus dados? E, aliás, desde quando baixar música na Internet seria um uso legalmente permitido? Finalmente, como é que a lei não se aplica? Toda a lei brasileira se aplica a todos os brasileiros. Ela pode não enquadrar a conduta como ilegal ou criminosa, mas se aplica.

"São 13 os novos crimes tipificados pela proposta: 1) acesso não autorizado a dispositivo de informação ou sistema informatizado; 2) obtenção, transferência ou fornecimento não-autorizado de dado ou informação; (...)

"- Vale lembrar que APENAS OS DADOS DE CONEXÃO SERÃO GUARDADOS. A NAVEGAÇÃO É LIVRE E SÓ SERÁ INVESTIGADA MEDIDANTE SOLICITAÇÃO JUDICIAL, O QUE, É CLARO, SÓ OCORRERÁ EM CASO DE DENÚNCIA DE CRIME."


Como se depreende pela carta, a navegação é livre, mas só se ela for para acessar dados "autorizados". E não esqueça que os dados de sua conexão serão gravados. Mas apenas para a sua segurança! Reparem no que diz o artigo proposto pelo substitutivo do Senador:

Art. 285-A. Acessar rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização do legítimo titular, quando exigida;
Art. 285-B. Obter ou transferir dado ou informação disponível em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização ou em desconformidade à autorização, do legítimo titular, quando exigida;


Ou seja, o artigo criminaliza sim o acesso à dados não autorizados (ainda que o detalhe da autorização ter que ser ?exigida?, não faz a menor diferença), bem como criminaliza também a transferência de dados sem autorização do titular. Ainda que o senador acredite que a interpretação do artigo deverá ser outra, sabemos que no Direito, vale a interpretação do juiz para o que não está expresso.

Existem pessoas que por ma fé estão divulgando informações erradas e infundadas sobre esta proposta.


A melhor parte do e-mail deixei para o final. Como disse o Träsel, evidentemente, somos pessoas de má fé por tentarmos discutir na esfera mais atingida pela legislação, um projeto tão ilustre.

Finalmente, eu também não entendo as razões da criação de tipos específicos para condutas criminosas que já estão no Código Penal Brasileiro, como o ?estelionato eletrônico? (estelionato, art. 171 do CPB). Será que no futuro teremos ?estelionato motorizado?? Ou ?estelionato por GPS??

Finalmente, não sou contra a Convenção de Budapeste. Apenas acho que não é tarefa simples legislar sobre os crimes da Internet sob a forma de legislações específicas (que, aliás, tendem a rapidamente cair no ostracismo devido às rápidas mudanças do meio). Acho sim, que isso merece ser discutido na instância pública da sociedade e não aprovado enquanto projeto antes dessa discussão. Mesmo que isso me faça uma pessoa de má fé.

Update: Vejam essa entrevista com o Pedro Rezende a respeito do substitutivo para entender um pouco melhor as conseqüências possíveis da aprovação do mesmo.